No item anterior, procuramos explicar a emergência do fenômeno urbano no século XIX. Nesta parte de nosso curso, iremos discutir o que entendemos sobre planejamento urbano e gestão urbana.
Existe um conjunto de obras que constituem o que chamamos de legado dos estudos históricos sobre o planejamento urbano, nem sempre este é composto por pesquisadores genuinamente vinculados à área de Geografia, este aspecto interdisciplinar pode enriquecer e contribuir para que se ampliem as perspectivas metodológicas dos estudos sobre a história contemporânea do planejamento urbano.
Indicaremos algumas obras que consideramos primordiais para uma pesquisa inicial sobre a história do planejamento urbano, principalmente nesta parte que trata de aspectos conceituais:
Como já havíamos tratado anteriormente, foi durante o século XIX que se constatou as primeiras iniciativas deliberadas de Planejamento. O movimento do planejamento mais conhecido foi o "The garden city movement", fundada em 1898 por Ebenezer Howard, no Reino Unido. Este movimento se caracterizou por criar importantes "Cidades Jardins", que tinham como por objetivo oferecer áreas residenciais rodeadas por cinturões verdes, separadas de forma equilibradas das áreas industriais e agrícolas. Howard, inspirado por ideais utópicos organizou a "The Garden City Association", em 1899, com o objetivo de criar duas cidades na Inglaterra: Letchworth Garden City, em 1903, e Welwyn Garden City, em 1920. Este dois projetos são o testemunho do sucesso empreendido pelo movimento de criação das "Cidades Jardins".
Segundo Rosemary Mellor, a Grã-bretanha reunia as condições ideais para o surgimento do movimento pela criação das Cidades Jardins:
O movimento do planejamento da cidade pode ser datado dos últimos anos do século dezenove. The Garden City Association, mais tarde the Town and Country Planning Association foi fundada em 1899. Havia um senso de que a velha ordem chamava por mudança, que o avanço técnico e o sucesso comercial não tinha trazido prosperidade e felicidade para todos e que intencionais iniciativas tinham de ser tomadas pela opinião informada para efetuar uma reconstrução organizada da sociedade. O movimento do planejamento da cidade era um pequeno grupo de pressão tirando apoio das profissões (principalmente arquitetos, agrimensores e engenheiros, os três elementos que apoiaram a fundação do Town Planning Institute em 1913), com pequena massa de apoio. As suas mais estreitas ligações eram com outros grupos, tais como os Fabians, a Sociological Society e o National Housing Reform Council (fundado em 1900). Todos estes procuravam fornecer idéias a "homens de influência" e permaneciam afastados da violenta e súbita mudança social do período anterior e posterior à Primeira Guerra Mundial.
A Grã-Bretanha, então, era a sociedade mais bem organizada do mundo: apenas 10 por cento da força do trabalho permanecia no campo e completamente 80 por cento da população residia em áreas definidas como cidades. E mesmo em comparação com outras sociedades, poderes de controle sobre o desenvolvimento urbano permaneceram mínimos. (MELLOR, 1984, p.211)
O planejamento na Grã-bretanha representou uma reação ao crescimento desordenado das cidades industriais enquanto grandes economias de aglomeração. As idéias do "The Garden City Movement" foram rapidamente assimiladas nas América do Norte e do Sul.
Em razão do grande uso efetuado desses termos, torna-se crucial elucidar e estabelecer a diferença existente entre os conceitos de planejamento, gestão, governo, gerência e governança.
A palavra planejamento é comumente empregada como sinônimo de planificação, em Portugal o correlato do termo é planeamento. A expressão planejamento nas línguas anglo-saxônicas aparece como "planning".
Planejar significa antever processos futuros, prognosticar a evolução de tendências, elaborar um plano ou um programa com o objetivo de coordenar ações preventivas ou necessárias contra os efeitos do crescimento territorial desordenado da acumulação capitalista e da urbanização, ou seja, o planejamento pode ser implementado nas escalas territorial, regional e urbano.
Segundo Marcelo Souza (2002, p.45), a partir da segunda metade dos anos 80, a expressão gestão passou a ser utilizada em diferentes campos do saber como "sucedâneo" do termo planejamento. 1
Ao explicar a diferença entre planejamento e gestão, Marcelo Souza argumenta:
Planejamento e gestão não são termos intercambiáveis, por possuírem referenciais temporais distintos e, por tabela, por se referirem a diferentes tipos de atividades. Até mesmo intuitivamente, planejar sempre remete ao futuro: planejar significa tentar prever a evolução de um fenômeno ou, para dizê-lo de modo menos comprometido com o pensamento convencional, tentar simular os desdobramentos de um processo, com o objetivo de melhor precaver-se contra prováveis problemas ou, inversamente, com o fito de melhor tirar partido de prováveis benefícios. De sua parte, gestão remete ao presente: gerir significa administrar uma situação dentro dos marcos dos recursos presentemente disponíveis e tendo em vista as necessidades imediatas. O planejamento é a preparação para a gestão futura, buscando-se evitar ou minimizar problemas e ampliar margens de manobra; e a gestão é a efetivação, ao menos em parte (pois o imprevisível e o indeterminado estão sempre presentes, o que torna a capacidade de improvisação e a flexibilidade sempre imprescindíveis), das condições que o planejamento feito no passado ajudou a construir. Longe de serem concorrentes ou intercambiáveis, planejamento e gestão são distintos e complementares ...Um desafio que se coloca de imediato, ao se debruçar sobre a tarefa de planejar, é o de realizar um esforço de imaginação do futuro. Não deve haver sombra de dúvida quanto ao fato de que o planejamento necessita ser referenciado por uma reflexão prévia sobre os desdobramentos do quadro atual - ou seja, por um esforço de prognóstico. Não há ação, muito menos ação coletiva coordenada, que possa prescindir disso. Descurar indiferenciadamente a importância do planejamento, alegando, dentre outras coisas, que não se pode predizer o futuro, trai uma irresponsabilidade típica da atitude livresca e diletante, em que o comprometimento com a ação transformadora é, quando muito, puramente retórico. (SOUZA, 2002, 45-46)
Dentre as expressões mais usuais neste curso, a gestão urbana é aqui conceituada como um processo de concepção, decisão, intervenção, regulação, mediação, que se desenvolve no espaço em função do embate ou conflito entre os diferentes atores sociais. Portanto, dentro dessa conceituação, a gestão urbana se constitui num processo que configura ou condensa, material e historicamente, as relações de forças dos grupos sociais representados politicamente no Estado e estabelecidos economicamente no espaço. Logo, a gestão urbana não é uma função ou incumbência de um grupo restrito de políticos ou de administradores, não é uma estrutura estanque configurada por algumas agências ou instituições governamentais. Também não é um sistema, dado às múltiplas relações dialéticas que o define enquanto processo nos variados contextos históricos; nem um processo cuja ocorrência se restrinja apenas á dimensão meramente superestrutura! da formação social, ou se constitui num conjunto de práticas definidas apenas para reproduzir e consubstanciar a infra-estrutura ou a base econômica e material da sociedade capitalista (PIRES, 1988, p.02-06).
Nesse sentido os enunciados teóricos da expressão gestão urbana, acima desenvolvidos, se aproximam do conceito estabelecido por Marques et alii (1986, p.18) que a evidencia enquanto "política-administrativa de condução das intervenções e mediações relativas aos diferentes interesses dos agentes sociais presentes contexto das contradições metropolitanas...".
Entretanto, segundo a acepção acima, a gestão não deve ser concebida apenas como: "... um conjunto de atividades prioritárias, definição de metas, alocação de recursos, etc, para o planejamento e funções operacionais..."(WELLAR, 1976:9)
Esta diferença é aqui estabelecida em função dos pressupostos definidos á investigação dos processos reais existentes numa dada formação social, não negligenciando a importância das contradições presentes entre os atores sociais em questão, nem os aspectos políticos que definem as formas de gestão no espaço.
Para Wilheim (1982, p.137) é preciso estabelecer a diferença entre os significados dos termos "governar" e "administrar" para se poder definir o conceito de gestão com mais propriedade, segundo o autor:
...Convém inicialmente diferençar e precisar os termos "governar" e "administrar", ambas atividades necessárias á gestão urbana, pois enquanto se governa uma cidade o que se administra é apenas a máquina burocrática de sua Prefeitura. Assim "governar" é mais do que administrar; significa conter, interpretar anseios da população, e abrange a proposição de metas socialmente desejáveis, ecologicamente prudentes e economicamente viáveis; governar significa estabelecer vetores e estratégias políticas apontando para essas metas e, finalmente, articular e negociar com diversos agentes sociais cujos interesses são conflitantes, a fim de conduzir transformações urbanas ao longo dos vetores acima.
Já "administrar" significa articular os recursos humanos, financeiro e informativos de que dispõe a Prefeitura, a fim de maximizar a sua eficiência e de produzir a eficácia necessária para instrumentar a. estratégia estabelecida em sua ação de governar.
O conceito de gestão urbana aqui desenvolvido abrange os atos de administrar e governar, envolve de maneira combinada os dois significados enquanto processos complementares e interatuantes no espaço.
A maioria das tentativas de conceituação do termo gestão têm em comum, entre os autores, a dificuldade conceitual de estabelecer a distinção entre este conceito e o significado do termo gerência. A diferença principal existente entre os dois termos pode ser evidenciada a partir do campo de atuação e abrangência de ambos os conceitos. A gestão é um processo cujo nível de atuação se desenvolve no âmbito dos conflitos e contradições que abrangem a reprodução da base material da sociedade civil como um todo entendendo-se sociedade civil enquanto palco do embate da luta política e expressão da ideologia e de seu opostos também, como cenário da legitimação dos diferentes atores sociais, ou de sua transgressão no modo de produção capitalista (NASCIMENTO, 1984:3).
A gestão urbana abarca aspectos sociais e relações políticas e econômicas, cujos conteúdos e elementos influenciadores se constituem e se configuram historicamente no território e fora dele. A contribuição de inúmeras gestões urbana para a execução das diretrizes básicas da geopolítica no território, foi a de vincular politicamente o espaço, enquanto dimensão de reprodução da sociedade e suas relações contraditórias, ao poder do Estado autoritário e suas instituições; exorcizando ideologicamente os anseios das lideranças organizadas da população dos processos decisórios de gestão.
Sem embargo, o termo gerência possui um sentido mais circunscrito ao nível de atuação institucional ou organizacional, cujo universo de abrangência não consegue ultrapassar os limites territoriais corporificados pela organização e seu mercado; è a capacidade de produção e concorrência monopólica ou oligopólica que influencia os procedimentos de gerência e planejamento organizacional (GALBRAITH, 1983, p.32). Embora os dois termos possuam conceituação distinta, se relacionam na dinâmica global do processo histórico das formações sociais, pois as mudanças organizacionais produzidas pelas novas formas de gerência condicionam as formas de gestão, que tendem a refletir as exigências de infra-estrutura e de condições básicas, para efetiva reprodução do processo de acumulação capitalista. Logo, a diferença entre esses conceitos não pressupõe dissociabilidade, mas complementaridade e singularidade (DELEUZE, 1974, p.06).
O termo gestão significa regular ou administrar o contraditório, ou seja, mediar as relações sociais e as condições gerais de produção e de reprodução, a partir de condições específicas às vezes limitadas de recursos e possibilidades.
Enquanto o termo gestão implica em regulação, o termo gerência implica em controle. Quando tratamos de gerência de estoques não estamos lidando apenas com a regulação do mesmo, a gerência implica no controle de entrada e saída. Gerir uma usina nuclear representa manter controles rígidos de processos de segurança e prevenção, não deve haver falhas. Portanto, os termos gestão e gerência são também distintos e complementares.
Manuel Castells (1984, p.209-210) considera que o surgimento do planejamento urbano está, de um certo modo, atrelado às sociedades industriais avançadas e ao agravamento dos "problemas urbanos, isto é, processos sociais de consumo coletivo". Mas, tal como os críticos do Planejamento, considera-o como uma ideologia, voltada para atuar de maneira deliberada e consciente, através de planos, programas e declarações políticas para promover a ação POLÍTICA e privada, que tem objetivos preestabelecidos em relação às áreas que são objetos de interesses do sistema de atores urbanos.
Jean Lojkine crítica a pressuposição de Castells de que o planejamento urbano não pode ser reduzido à política urbana. Segundo Lojkine:
Não negamos em absoluto o efeito ideológico e jurídico sobre os agentes sociais (que concorrem para a urbanização) que têm os documentos de urbanismo e, mais amplamente, o conjunto das opções espaciais - regulamentos de ocupação do solo - reagrupados sob o nome de "planificação urbana". Mas, como aliás é notado por F. Godard e M. Castells no último livro citado, é a partir das intervenções públicas reais sobre as contradições urbanas... que se pode "perceber o sentido dos diferentes documentos de urbanismo".
Mas, para nós, o "produto" que é a política urbana - produto de contradições urbanas, de relações entre diversas forças sociais opostas quanto ao modo de ocupação ou de produção do espaço urbano - não pode ser reduzido à "planificação urbana". Ele se compõe de três dimensões:
A hipótese que formulamos de uma política urbana coerente não remete portanto nem à suposta existência de uma "vontade" (que seria o poder de Estado ou um indivíduo particular) ou de uma decisão, nem à de um "projeto" - materializado por um plano e realizado por um conjunto de práticas estatais coercitivas. (LOJKINE, 1981, p. 180-181)
Em sua crítica a Manuel Castells, Lojkine considera três dimensões da política urbana atuando de maneira combinada na elaboração do planejamento, e não acredita que o planejamento urbano seja produto da política, de pessoas ou o resultado de uma vontade do Estado.
Diferentemente de planejamento, gestão e gerência, o termo Governança, introduzido no final dos anos 80, passou a ser usado com sucedâneo do termo planejamento integrado. A intenção era substituir os instrumentos de ordenamento e de mediação dos governos exercidos pelas antigas fundações de desenvolvimento das regiões metropolitanas (espaços "mesourbanos"), criadas durante o regime autoritário, período este em que estas fundações desempenhavam o papel de garantir a governabilidade em espaços supramunicipais.
Ribeiro & Pinto (2007, p. 197-199) nos fornecem uma explicação profundamente esclarecedora que amplia a nossa concepção sobre o conceito de Governança Urbana:
...Usando o conceito adotado por (Christian) Lefévre, governança é a capacidade das áreas metropolitanas para estabelecerem ferramentas, mecanismos, instrumentos e ordenamentos para que sejam governáveis. Para o autor, governabilidade é o estado de um território onde é possível executar políticas públicas e ações coletivas capazes de resolver problemas e contribuir para seu desenvolvimento.
A caracterização dos diversos modelos de governança metropolitana varia entre autores, conforme os atributos destacados. (Jeroen) Klink parte dos critérios usuais na teoria econômica para avaliar marcos institucionais - eficiência e eqüidade -, e agrega o atributo de voz (voice) para comparar experiências. A partir desses três critérios, distingue dois grandes tipos de estrutura de governança metropolitana: as que caracterizam pela fragmentação e as consolidadas. As estruturas consolidadas seriam preferíveis onde se valorizassem mais os quesitos de eficiência e eqüidade: permitiriam captar economias de escala e minimizar externalidades, além de melhor distribuírem ônus e benefícios da provisão de serviços públicos por toda a área metropolitana. As estruturas fragmentadas, por outro lado, propiciariam voz aos cidadãos, pela maior transparência e prestação de contas. A construção de uma boa governabilidade metropolitana não se resume à mudanças rápidas, que visem a implantar sistemas de planejamento e gestão metropolitanas com eficiência e eqüidade. As mudanças têm forte conteúdo político e requerem o envolvimento das partes interessadas desde o início do processo (KLINK, 2003:5-7)
Lefévre distingue duas grandes categorias de governança: a que se produz a partir da construção institucional e a governança por meio de arranjos que, embora não se constituam como unidades de governo local, formalizam-se por meio de procedimentos precisos e instrumentos específicos de cooperação.
Os modelos de governança por construção institucional podem compreender arranjos supramunicipais, normalmente com definição de um novo escalão de governo independente das unidades locais.
Os modos de governança não-institucional podem ser divididos em duas categorias. A primeira lida com estruturas existentes em áreas metropolitanas em que não há instituição metropolitana, sendo as políticas públicas desenvolvidas por órgãos mono ou pluri-setoriais, mas infra-metropolitanos. A cooperação visa a superar essas limitações...O segundo modo diz respeito a instrumentos específicos desenvolvidos por diferentes países para a coordenação de políticas e cooperação entre atores públicos. São acordos formalizados com restrições setoriais e alcance espacial limitado.
As estruturas de governança porventura existentes em regiões metropolitanas estão em descompasso com a complexidade crescente das funções a desempenhar, não apenas no Brasil e em países latino americanos em geral, mas mesmo em países membros da OCDE. Em extenso relatório sobre o tema da governança metropolitana, a OCDE considerava lentos os progressos na direção de melhores estruturas de governança, devido a diferenças de opinião fortemente enraizadas sobre natureza e extensão das reformas institucionais e financeiras requeridas. E destacava, entre os obstáculos a vencer, a fragmentação administrativa, que resultava em desconexão entre os territórios administrativo e funcional, as pressões sobre a capacidade fiscal e financeira das autoridades constituintes de regiões metropolitanas e a falta de transparência dos processos decisórios e de responsabilização sobre os impactos das ações resultantes (OCDE, 2001:12).
Com base na leitura deste módulo, responda a questão: qual é a diferença entre planejamento urbano, gestão urbana e governança urbana?