Neurocognição

Estratégia de sobrevivência

Com a evolução do sono REM, cada espécie pôde processar a informação mais importante para sua sobrevivência, como localização de alimentos, meios de capturar presas ou de fugir - atividades durante as quais o ritmo teta está presente. No sono REM, esta informação pode ser acessada novamente e integrada à experiência passada, para proporcionar uma estratégia progressiva de comportamento. Embora o ritmo teta não tenha sido ainda demonstrado nos primatas, incluindo os seres humanos, os sinais cerebrais fornecem uma chave para a compreensão da origem do sonho em seres humanos. Os sonhos podem refletir um mecanismo de processamento da memória herdado de espécies inferiores, no qual a informação importante para a sobrevivência é reprocessada. Essa informação pode constituir o cerne do inconsciente.

Como os animais não possuem linguagem, a informação que processam durante o sono REM é necessariamente sensorial. De forma consistente com nossas primitivas origens mamíferas, os sonhos nos humanos são sensoriais, principalmente visuais, não assumindo a forma de narração verbal.

Em consonância ainda com o papel desempenhado pelo sono REM no processamento da memória nos animais, não existe necessidade funcional de que este material se torne consciente. A consciência surge mais tarde, com a evolução humana. Mas também não há razão para que o conteúdo dos sonhos não alcance a consciência. Assim, os sonhos podem ser lembrados - mais facilmente se o despertar ocorrer durante ou logo após o sono REM.

Minha hipótese é de que os sonhos refletem a estratégia de sobrevivência das pessoas. Os temas dos sonhos são variados e complexos, incluindo auto-imagem, temores, inseguranças, poderes, idéias grandiosas, orientação sexual, desejo, ciúme e amor.

 Os sonhos tem, claramente, um profundo núcleo psicológico. Esta observação foi feita por psicanalistas desde Freud e admiravelmente ilustrada pela obra de Rosalind Cartwright, do RushPresbyterian-St. Luke's Hospital, de Chicago. Cartwright estudou 90 pessoas que passavam por processos de separação e divórcio conjugal. Todas foram avaliadas clinicamente e submetidas a testes psicológicos para determinar suas atitudes e respostas a crise pela qual passavam. Elas foram também despertadas durante o sono REM para que relatassem seus sonhos por conta própria, sem perguntas que pudessem influenciar suas interpretações. Em 70 dos casos estudados, o conteúdo dos sonhos referia-se a pensamentos inconscientes e estava fortemente relacionado ao modo pelo qual a pessoa lidava com a crise quando acordada.

Embora não seja possível prever o tema "escolhido" para consideração durante uma noite de sono, algumas das dificuldades da vida - como no caso das pessoas estudadas por Cartwright - vinculam-se de tal forma à sobrevivência psicológica que são selecionadas para processamento durante o sono REM. Em circunstâncias normais, o tema dos sonhos pode ser livre, dependendo da personalidade do indivíduo. Ao se combinar com as intrincadas associações que são parte intrínseca do processamento do sono REM, seus enunciados podem ser bastante obscuros.

 Todavia, há razão para acreditarmos que o processo cognitivo que ocorreu com as pessoas estudadas por Cartwright ocorra com todos. A interpretação depende dos eventos relevantes ou similares reconhecidos pelo indivíduo; essas associações são muito influenciadas pelas experiências da primeira infância.

Minha hipótese permite também explicar a grande quantidade de sono REM observada nos recém-nascidos e nas crianças. Os recém-nascidos passam 8 horas por dia em sono REM. O ciclo do sono está, nessa idade, desorganizado; ocorre em ciclos de 50 a 60 minutos, começando pelo sono REM, e não pelo de ondas lentas. Aos dois anos de idade, o sono REM é reduzido para três horas ao dia e diminui gradualmente até chegar a pouco menos de duas horas.

O sono REM pode desempenhar uma função especial nos bebês. Uma das teorias dominantes sustenta que estimule o desenvolvimento de neurônios. Sugiro que, por volta de dois anos de idade, quando o hipocampo, que continua a se desenvolver após o nascimento, torna-se funcional, o sono REM assume sua função de memória interpretativa. A informação obtida durante a vigília e a ser integrada neste ponto do desenvolvimento constitui o substrato cognitivo básico da memória - o conceito do mundo real contra o qual as experiências posteriores devem ser comparadas e interpretadas. A organização na memória dessa extensa infra-estrutura exige o tempo adicional de sono REM.

Por razões que não podia conhecer, Freud apresentou em sua obra uma verdade profunda. Há um inconsciente e os sonhos são, de fato, a "via privilegiada" para compreendê-los. Entretanto, as características dos processos inconscientes e associados do funcionamento do cérebro são muito diferentes daquelas imaginadas por Freud. Proponho que o inconsciente seja considerado, não como um caldeirão de paixões indomáveis e de desejos destrutivos, mas como uma estrutura mental continuamente ativa e coesa que registra as experiências e reage de acordo com o seu próprio esquema de interpretação. Os sonhos não são dissimulados em razão da repressão. Seu caráter incomum resulta das complexas associações que são selecionadas da memória.

A pesquisa sobre o sono REM sugere que há uma razão biologicamente relevante para o sonho. A versão revisada da hipótese de síntese-ativação de Hobson e McCarley reconhece o profundo núcleo psicológico dos sonhos. Em sua formulação truncada atual, a hipótese da ativação aleatória do tronco encefálico tem pouco poder explicativo ou preditivo.

A hipótese de Crick Mitchison atribui uma função para o sono REM - o aprendizado invertido - mas não se aplica a narrativa, só aos elementos bizarros do sonho. É preciso definir a implicação disto para o processamento REM nas espécies inferiores antes que a teoria possa ser melhor avaliada. Além disso, a hipótese Crick Mitchison, aplicada ao hipocampo, sugeriria que os neurônios disparam aleatoriamente durante o sono REM, permitindo assim o aprendizado invertido. Meu experimento com os neurônios que mapeiam o espaço sugere, em vez disso, que estes neurônios disparam de forma seletiva, o que implica um processamento ordenado da memória.

Avi Karni e seus colegas do Weizmann Institute of Science, em Israel, mostraram que o processamento da memória ocorre, nos humanos, durante o sono REM. No experimento que fizeram, os indivíduos aprenderam a identificar padrões específicos em uma tela. A memória desta habilidade foi aprimorada após uma noite de sono REM. Quando as pessoas foram privadas do mesmo, a memória não se consolidou. Este estudo abre um campo de investigação promissor.

Talvez seja de maior importância a evidência, fornecida pela biologia molecular, que confirma o papel desempenhado pelo sono REM no processamento da memória. Sidarta Ribeiro e seus cole­gas da Rockefeller University relataram que o gene zif-268, associado ao aprendizado, e ativado seletivamente durante o sono REM em ratos expostos a experiência em um período de anterior de vigília. Podemos esperar, dessa área de pesquisa, uma maior compreensão do papel do sono REM.

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