Neurocognição

As perdas da memória de trabalho são inerentes à sua natureza

Há vários tipos de memória. Em primeiro lugar, existe a memória de trabalho, que usamos para entender a realidade que nos rodeia e poder efetivamente formar ou evocar outras formas de memória: a que denominamos de curta duração e que dura umas poucas horas, o suficiente para que possa se formar a memória de longa duração (também chamada memória remota), que dura dias, anos ou décadas. Para mim, que tenho muitos anos, a memória da minha infancia é remota; a lembrança do que aconteceu ontem ou na semana retrasada é simplesmente memória de longa duração. A lembrança do que eu estava fazendo duas ou três horas antes de me sentar para escrever este texto, a memória de curta duração. Enquanto escrevia, a memória da terceira palavra da frase anterior (que já perdi) foi parte da minha memória de trabalho. O mesmo aconteceu com você, leitor, ao ler essa frase: você compreendeu a terceira palavra de minha frase, há poucos segundos, mas já não a recorda mais. Outro exemplo típico de memória de trabalho é a do número telefônico que solicitamos ao nosso vizinho, que dura só o tempo suficiente para discá-lo. Logo depois de fazer a chamada, a lembrança do número desaparece, e se queremos aprendê-lo, devemos perguntá-lo novamente ou registrá-lo em algum lugar. A memória de trabalho não forma arquivos duradouros: desaparece em segundos ou, no máximo, minutos. Está feita para ser assim, de maneira que nenhuma informação que esteja sendo processada venha a interferir ou se confunda com as que ocorreram logo antes ou as que virão logo a seguir. Se a terceira palavra da minha frase anterior persistisse além de alguns segundos, nem eu seria capaz de continuar escrevendo, nem você seria capaz de continuar lendo; viraríamos prisioneiros dela, repetindo-a mentalmente fora de contexto.

A memória de trabalho depende da atividade elétrica de neurônios do córtex pré-frontal, localizado na frente da área motora, e não persiste além disso. Quando cessa a ativação dos neurônios pré frontais, a memória de trabalho também cessa.

Como veremos mais adiante, os neurônios são ativados por substâncias químicas, mas emitem suas mensagens por meio de atividade elétrica. Os neurônios do córtex pré-frontal se ativam em resposta às experiências de cada momento, a sua estimulação dura enquanto dura a experiência; somente às vezes persiste um pouco mais. Voltemos ao exemplo da terceira palavra de minha frase anterior, que persistiu só o suficiente para que eu conseguisse continuar escrevendo e você lendo.

Enquanto o mecanismo da memória de trabalho é posto em jogo em cada experiência, a informação processada pelo córtex pré-frontal se comunica a outras regiões do cérebro e faz um intercâmbio de informações com elas. As outras regiões do cérebro incluem aquelas que analisam rapidamente a informação sensorial e as que armazenam memórias de maior duração. Assim, nosso cérebro toma aquela famosa terceira palavra da frase anterior e a insere num contexto maior: o da compreensão de um texto mais longo. A análise rápida de informação é feita on line pela memória de trabalho, e comparada com outras informações que possam ocorrer simultaneamente ou que já estejam guardadas no cérebro. Assim, distinguimos o homem apoiado na parede da calçada em frente da própria parede e das pessoas que passam; distinguimos o carro que avança pela rua das árvores que permanecem fixas (e com isso entendemos que o carro avança e estimamos sua velocidade), distinguimos o que há de novo e importante naquilo que está acontecendo no momento e precisa ser guardado na memória, e que informação já temos e não precisa ser guardada porque seria redundante.

No caso da memória de trabalho, sua própria função e formação exigem que seja fugaz. Esta baseada em mecanismos muito rápidos e, por definição tanto psicológica como anatômica, é necessariamente evanescente. Foi feita para ser assim. Sua feitura é uma arte, uma arte de delicadeza e precisão sem par, mas uma arte que compartilhamos com todos os seres humanos e todos os vertebrados. Há evidências que sugerem que a memória de trabalho de alguns primatas superiores seja melhor do que a nossa. A perda de informação da memória de trabalho não pode ser considerada um esquecimento real, já que é própria de sua natureza.

Que acontece quando a memória de trabalho fracassa? Uma informação se confunde com a anterior ou com a seguinte, ou com a que está ao lado ou acima; confundem-se entre si as informações simultâneas e não conseguem ser distinguidas das informações sucessivas ou isoladas. Não conseguimos distinguir muito bem o homem da parede na qual se apóia, ou o carro que avança, das árvores que o rodeiam. Ambas cenas constituem uma massa uniforme, onde homem e tijolos, carros e árvores se confundem. O professor enxerga seus alunos como uma massa informe de rostos, e a pergunta que um deles lhe fez confunde-se com a resposta que deu a pergunta de um aluno anterior. Confundem-se cheiros, objetos e sons. A memória de trabalho serve para discriminar informações e selecionar quais correspondem ou não a memórias preexistentes. Quando ela falha, a realidade vira incompreensível ou alucinatória porque seus componentes se confundem entre si. Isto pode acontecer quando estamos exaustos, sem dormir há muitas horas, quando somos submetidos a um excesso de informação e/ou quando estamos profundamente estressados.

Quando falha a memória de trabalho pode acontecer que a realidade apareça como ameaçadora, como algo que estabelece uma situação de paranóia. A esquizofrenia se caracteriza por falhas grosseiras na memória de trabalho, devidas a lesões congênitas no córtex pré-frontal. Por isso os esquizofrênicos percebem a realidade como algo alucinatório. Confundem objetos ou pessoas sonhados com objetos ou pessoas reais, confundem o sonhado ontem com o que estão vendo agora, confundem, às vezes, cheiros com sons... (Um amigo meu, esquizofrênico, dizia que gostava de cheirar a música de Beethoven; outro conhecido meu, também esquizofrênico, afirmava que esse exército de anões que nos rodeava constantemente era inofensivo, não fosse o mau cheiro.) Além disso, os esquizofrênicos padecem de transtornos na formação das memórias de curta a longa duração, devidos a alterações morfológicas nos lobos temporais, principalmente no hipocampo e no córtex que o rodeia, que são os encarregados de processar as memórias de curta e longa duração, assim como sua evocação. A memória de longa duração das realidades alucinatórias sistematizam as visões em delírios, muitos dos quais acompanham o esquizofrênico por toda sua vida. Ocasionalmente, por meio de lenta e cuidadosa psicoterapia, os esquizofrênicos podem discriminar entre o mundo do delírio, que lhe é profundamente individual, e a realidade efetiva, que compartilha com os demais seres humanos. Um grande exemplo disso se vê no filme Uma Mente Brilhante, onde o ator Russell Crowe desempenha o papel de John Nash, um esquizofrênico de grande talento que, muito bem tratado com remédios antipsicóticos e psicoterapia, conseguiu levar uma vida pessoal relativamente equilibrada (porém difícil) e obter um Prêmio Nobel. Nash realizou suas pesquisas e tirou delas as conclusões que o levaram ao Prêmio Nobel enquanto sua mente estava dividida entre a atenção dispensada ao mundo real e a atenção dedicada ao mundo fictício de suas alucinações fortes e recorrentes.

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